A dificuldade em reconhecer a história depois da história

Matheus Eduardo
4 min readOct 14, 2020

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Divulgação

Na noite de 13 de outubro de 2020, terça-feira, Neymar marcou três gols contra o Peru e garantiu a vitória brasileira, fora de casa, por 4 a 2, no começo de caminhada nas Eliminatórias para a Copa de 2022. O momento foi importante para colocar o craque como vice-artilheiro histórico do Brasil, com 64 bolas na rede, superando Ronaldo Fenômeno (62). À frente dele, apenas o Rei Pelé (77).

No entanto, a marca ainda é comentada com certo desdém por parte dos torcedores e da imprensa nacional, que, diariamente, levantam questionamentos sobre o camisa 10 ainda “dever” com a amarelinha — mesmo após atuações dominantes.

Por que isso acontece? De que forma vemos, de modo geral, a carreira de Neymar Júnior pela Seleção Brasileira?

Desde a Copa de 2018, ficou notório o desgaste da imagem de Neymar perante o público nacional. Sabemos bem que o brasileiro é exigente — com razões para tal — quando se fala de futebol, Copa do Mundo e expectativas. O Brasil vinha em um nível alto e não ganhou aquela Copa (por uma série de fatores que não serão detalhados aqui), e o camisa 10 foi do céu ao inferno com grande parte dos torcedores. A expectativa frustrada certamente afeta a avaliação no “produto final” do jogador na carreira, sobretudo quando perdemos um pouco a referência para cobrar um melhor desempenho.

É neste ponto que a história depois da história entra.

O que é isso?

As gerações das décadas de 1990 e 2000 viram muitas vitórias e um ciclo dominante do Brasil, seja em Copas do Mundo, Copas América ou outros jogos da Seleção. Era outro momento, outro contexto. Conquistamos o mundo em 94 e em 2002 com muitos jogadores de primeiro nível no momento, nomes de destaque no período entraram na infância e no imaginário de muita gente nessas duas décadas. Obviamente, qualquer queda depois disso afastaria parte dos torcedores daquele centro e tornaria a comparação com os futuros nomes insuportável.

É aí que surge Neymar. Em uma entressafra, após/durante fracassos em competições grandes, queda de nível dos grandes craques do começo do século XXI e um distanciamento do torcedor com a Seleção Brasileira. Três fatores que, somados, tornam a visão, muitas vezes injusta do torcedor, ainda mais cruel e irreal. Sem contexto não há entendimento.

Quando li sobre um questionamento quanto ao patamar de Neymar entre os melhores e maiores da Seleção, vi com certo espanto pessoas nem cogitarem o grande jogador desta era entre os mais destacados na listagem. Afinal, a Copa do Mundo é um diferencial tão grande assim? A regularidade de uma década, aliada à liderança em um momento difícil da Seleção — situação que craques como Ronaldo, Ronaldinho, Kaká e Rivaldo não pegaram desta maneira — não conta de nada?

Bom, vamos aos clichês necessários:

  • Neymar é o maior artilheiro do Santos pós-Pelé (estamos falando de um período de quase 50 anos), com 138 gols (135 oficiais);
  • Neymar é o 2º maior artilheiro da história da Seleção Brasileira (já listado acima), tendo marcado gol em duas finais pelo país — uma delas com conquista inédita;
  • Neymar tem longevidade como titular da Seleção que nem os craques das últimas décadas — Rivaldo, Kaká, Ronaldinho e Ronaldo — conseguiram manter;
  • Neymar liderou o PSG na melhor campanha da história do clube em uma Liga dos Campeões da Europa — vice-campeonato em 2019/20, e não chegavam às semis da competição há 26 anos;
  • Neymar tem mais gols que Ronaldinho pelo Barcelona (em menos tempo e menos jogos), conseguiu manter um nível próximo ao de Lionel Messi nos últimos quatro anos e decidiu grandes torneios em diferentes momentos da carreira — Libertadores aos 19 anos de idade; Copa das Confederações aos 21; Champions aos 23; Olimpíada aos 24; duas (ou três) vezes top-3 mundial (só não vencendo porque viveu na realidade de Messi e CR7).

Não falta contexto histórico para enaltecer o jogador. Resumir tudo às Copas do Mundo — nas quais o mesmo Neymar não esteve na melhor forma física, seja pela lesão sofrida em 2014 ou pelo tratamento apressado em 2018 — é injusto e muito raso. Na avaliação individual, a ótica é outra e o saudosismo pode pesar contra.

Não é a intenção deste texto desmerecer o que grandes ídolos do passado fizeram — longe disso, ainda mais em uma cultura de futebol tão rica quanto a brasileira. Mas precisamos deixar de lado alguns preconceitos ou comparações — como esperar que os craques atuais repitam tudo que outros fizeram, em outro contexto — para reconhecer o tamanho de quem chega depois. A história que foi feita lá atrás não invalida o que está sendo escrito agora, de formas diferentes; não é sempre um círculo vicioso.

Se o jogo de hoje representou questionamentos sobre a qualidade de Neymar com a camisa do Brasil— o que me parece absurdo em qualquer perspectiva — , jogos seguintes podem permitir abrir os olhos enquanto ainda há tempo de desfrutar do grande talento desta geração, e sem diminuir as qualidades do atleta porque ele vive em outra época. Sentiremos falta quando acabar, e é importante dar valor enquanto ainda há tempo.

Além disso, falamos sobre um atleta com carreira em curso, no que, teoricamente, é a idade do auge (28 aos 30 anos) enquanto jogador, dominando funções e aliando isso à parte física. Há mais para acontecer.

Aproveitem o futebol, o talento, o encanto. Aproveitem Neymar Júnior.

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Matheus Eduardo

Raramente (mas não nunca) posto algumas ideias aqui. A intenção é fazer essas leituras valerem a pena. Futebol em todos os sentidos possíveis.